Crônica primeira
Em
alguns lugares do passado
Autoria: Eder Francisco Novembro de 2023
Sem querer, querendo, entrei neste negócio
de música desde a mais tenra idade. Influenciado por minha mãe, que fora
cantora de rádio quando morou em Birigui no interior de São Paulo. Isto foi na
época das calendas, lá entre o final dos anos 1950 e meados dos 1960. Naquela
época rádio se fazia ao vivo. Inúmeros cantores, cantoras e instrumentistas, anônimos
em sua maioria, passavam o dia nas rádios fazendo números ali, na hora, sem
playback, apresentando repertório das canções e artistas que estavam na boca do
povo.
Tempo passou, ela conheceu meu pai em
Araçatuba, cidade ao lado de Birigui. A família dela, que já havia feito o
traslado em pau de arara no final dos anos 1930 da Bahia para o interior de São
Paulo, acabou se mudando para a capital. Meus pais acabaram se casando aqui. Meu
irmão e eu nascemos na metade dos anos 1960, sendo eu o segundo da família.
Uma lembrança muito forte da primeira
infância, já adentrando os anos 70, era de ficar ao pé da máquina de costura de
minha mãe ouvindo-a cantar enquanto trabalhava na sua honrosa profissão que ainda
aos 83 anos, lhe dá sustento. Ali, ao redor, ficávamos meu irmão e eu a brincar
e brigar, como cai bem entre dois irmãos de idade próxima, enquanto a ouvíamos pedalar
a máquina manual cantando seu repertório que incluía canções de sua época de
cantora com as do rádio da época. Como memória afetiva desta época, ainda
guardo em mente as canções Colcha de Retalhos e Índia que foram gravadas pela
saudosa dupla Cascatinha e Inhana e as canções de Clara Nunes “Conto de Areia”
ou “O mar serenou” que faziam e fazem parte do repertório dela até hoje.
Fato curioso, até três semanas atrás eu
nunca havia me empenhado em pegar o violão para tocar com minha mãe. Isto se
deve ao fato de eu ter saído de casa aos 18 anos para justamente me dedicar à
música uma vez que havia um desentendimento familiar em relação a isto, e
talvez porque este universo musical tenha sido preconceituosamente renegado por
mim ao longo dos anos. Paguei minha dívida em uma visita a Ribeirão Preto, onde
ela mora, no feriado de Finados deste ano de 2023.
Voltando aos anos de chumbo, como é conhecida
aquela época, não havia rádio FM sendo que som que ouvíamos vinha de um velho
rádio, sintonizado em AM. As rádios mais populares à época eram a Record,
América, Bandeirantes e Globo com seus apresentadores que marcaram época no
rádio brasileiro, Zé Bétio, Eli Correa Barros de Alencar e Gil Gomes com seu
programa policialesco narrativo. Acordávamos ao som do programa do Zé Bétio gritando
“Vamo levantá, vamo levantá. Olha a hora, olha a hora”, se apresentando ao som
da canção Quem é? de autoria de Silvinho e famosa na voz do saudoso Aguinaldo
Timóteo, ao que ele respondia, cortando a gravação após frase que dá nome à
música, “é o Zé Bétio” ou, ainda, mandando jogar água no marido e aconselhando
o uso de Tira Álcool para acabar com vício na maldita.
Eli Correa com sua dramatização de
casos populares de amores, fracassos e desilusões também deixou marcas. Tinha o
seu famoso bordão “ooooooi, genteeeee!”. Tudo muito caricatural. Na Rádio
América ouvíamos os programas América dá o Bis, tocando duas vezes sem seguida
cada uma das músicas apresentadas e, diariamente ao meio-dia, um programa
dedicado ao rei: Roberto Carlos Especial.
Roberto Carlos era o mais famoso
cantor popular brasileiro já a partir de meados dos anos 1960 e era presença
constante na televisão, no rádio e no cotidiano das pessoas pois, como disse
André Midani, diretor por décadas da Polygram, a música destes artistas
considerados bregas trazia enormes lucros para as gravadoras pois eles falam a
linguagem do povo e aquilo que o povo quer ouvir, tocando em assuntos e
situações que são inerentes a todos nós em nosso íntimo: o amor, o descaso, a
dor da perda, a derrota a vitória. Poderia escrever uma outra crônica sobre os
textos das músicas consideradas bregas e/ou de cantores bregas uma vez que há
inúmeras pérolas como a canção “Cadeira de rodas” gravada por Fenando Mendes que
versava sobre o amor, referindo-se à “aquela uma menina da cadeira rodas”,
provavelmente “de menor” (hoje poderia ser acusado de pedofilia) pela qual ele
se apaixona e vice-versa ou “Secretária da beira do cais”, gravada por César
Sampaio e que contava a história de uma moça que veio para a capital estudar e
trabalhar, mas acabou enrustida da família num obscuro trabalho à beira do cais.
Nos primeiros versos, a canção diz:
Ela
espera e não desespera na beira do cais
Ela quer quem vier, quem trouxer, quem der mais
Ela sabe que os homens de branco estão prá
chegar
E em câmara lenta ela tenta a vida ganhar
A MPB de grande qualidade, no
entanto, tinha uma força muito grande nos meios midiáticos brasileiros. As
gravadoras eram muito fortes, apoiavam e faziam esforços gigantescos para
apresentar os grandes expoentes da música nacional. Afinal, vender LP’s davam
muito lucro. As pessoas compravam mesmo e, ainda que os artistas pudessem
reclamar de contratos mais favoráveis às grandes corporações, estas mesmas
corporações promoviam megaeventos com grandes nomes que ainda hoje atuam no
cenário artístico nacional. Eram comuns os grandes shows de artistas
brasileiros no Anhembi, Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo e, igualmente, em
outras capitais. Assistia-se igualmente aos artistas de apelo mais popular na
televisão, mas era normal assistir a Elis Regina, Gilberto Gil, João Bosco,
Secos e Molhados, Rita Lee, Novos Baianos, entre outros, em programas como
Fantástico e Programa do Chacrinha. No campo da música erudita, o maestro Isaac
Karabtchevsky marcava ponto no programa Concertos para a Juventude, pasmem, na
Rede Globo no domingo de manhã.
Contudo, meu interesse pela música,
iniciando-se neste ambiente, voltou-se, em primeira instância, para ser cantor
de música brega. Me imaginava indo aos programas de calouro que existiam e que
ainda resistem nas tardes de bode dominical. Os programas do Silvio Santos,
Bolinha e Raul Gil eram os principais. Na média, estavam presentes na casa da
maioria dos brasileiros aos sábados e domingos à tarde. Pensava que um dia
teria de me apresentar em um destes. Também me imaginava, olhem só, pedindo ao
apresentador, no caso imaginava o Silvio Santos, me avisando a hora que deveria
começar a cantar, já que achava que não teria a percepção auditiva necessária
para perceber com clareza o momento certo de entrar...
Em casa havia um violão da pior
qualidade que meu pai ganhou em alguma rifa de bar. Pintura avermelhada com
toques de preto e uma rosácea ao redor da boca feitam em material tosco
imitando um marfim. Foi com este violão que meu pai me levou às aulas de um
velho professor no bairro. Durou pouco, talvez dois meses. Acabou quando ele
pediu aumento da mensalidade. Na minha época de garoto, quem começava a ter
aula de violão e acho que qualquer outro instrumento, o professor só iniciava
as aulas depois de comprado material que, no meu caso seriam um caderno de
música, o livro Escola de Tárrega, o livro “Curso de Leitura Rítmica Musical”
de Samuel Arcanjo e o livro “Método de Violão” de Fernando Azevedo. Havia um
desconhecimento completo de minha parte do que seria violão tocado dedilhado.
Na primeira aula, lembro até hoje passados cerca de 50 anos, que fiquei
impressionado com aquelas formigas desenhadas no papel e disse ao professor que
pensava que violão só se tocava “assim” fazendo um gesto de quem dá batidas com
a mão ou com palheta sobre as cordas do instrumento sem se preocupar com
leitura musical.
Acabei voltando o interesse genuíno
pela música entre os 13 e 14 anos de idade, mais precisamente em 1981. Naquela
época comecei a estudar em outro bairro. É curioso como os bairros podem moldar
a personalidade das pessoas ou as pessoas podem moldar a personalidade de um
bairro. Os primeiros dez anos foram passados no longínquo bairro de Capela do
Socorro, mais precisamente no Jardim São Luís com todas as características e
carências dos bairros periféricos das grandes cidades. Dos 10 aos 18 fui para
mais longe, ao sul da cidade, porém num bairro rural com lagos, montanhas
florestas etc. A partir dos treze passei a estudar em Interlagos, um bairro
mais organizado com casas bonitas, ruas asfaltadas e gente mais “antenada” mais
“cool”, mais “antenada” e com um leque cultural maior. Com isto, acabei saindo
do universo da música brega que, não me perguntem por que, permeia mais
acentuadamente os bairros mais “humildes”. Meus novos colegas de classe eram
roqueiros e, naturalmente, mas sem o peso que se dá a isto hoje em dia, passei
a sofrer um bullying amigável por conta dos meus gostos musicais e da pouca
diversidade cultural que apresentava em minhas colocações. Me enturmei, comecei
a gostar de rock, como eles, e decidimos formar uma banda. Cada um foi estudar,
já que ninguém tocava nada. Para encurtar a história e depois recomeçar deste
ponto em outra crônica, somente eu continuei os estudos de guitarra, passando e
me apaixonar em pouco tempo pelo violão clássico no qual estou embrenhado até
hoje. E lá se vão pouco mais de quatro décadas...
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