quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

 

Crônica Segunda - 13/12/2023


Era feliz e não sabia. Ou sabia?

 

Odair José, célebre artista popular brasileiro, com sua canção “A noite mais linda do mundo (Felicidade)”, escrita em parceria com Ana Maria de Barros, dizia em um verso que felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes. Não vou dizer que concordo com esta frase e nem com a frase “era feliz e não sabia”, típica de saudosistas como eu que almejam as mudanças que a vida naturalmente nos traz e depois ficam olhando no retrovisor da própria história se lamentando de não ter vivido mais intensamente determinado período da vida ou desejando poder voltar a vive-lo ou experienciá-lo com a “maturidade que tenho agora”. Bobagem.

Já, eu, se me permitem, diria que a felicidade sempre existe, nós é que precisamos aprender a enxergá-la no meio das turbulências. Nos círculos de ioga se diz que precisamos aprender ver ou sentir a bem-aventurança. Isto, porém, são outros quinhentos.

Como disse na crônica anterior, nasci e cresci num bairro típico de periferia dos grandes centros urbanos mundiais e me mudei para um bairro rural quando tinha cerca de uma dezena de anos nas costas. Há meio século, naturalmente, as coisas neste país eram bastante diversas do que hoje encontramos, tanto em aspectos materiais, quanto em aspectos sociais.

Apesar da simplicidade do bairro, no qual passei minha primeira década de existência, tínhamos à nossa disposição uma pequena rua de paralelepípedos na qual passava um carro de cada vez e de vez em nunca que desembocava num quadrilátero formando uma praça seca, isto é, sem árvores onde havia a entrada de nossa casa e de alguns vizinhos. Nesta pequena rua de aproximadamente oitenta metros, jogávamos taco e na praça maior, como não podia deixar de ser, futebol. Para quem não sabe ou para quem esqueceu, taco é uma espécie de jogo de beisebol rudimentar na qual duas equipes de dois jogadores cada se posiciona um defronte ao outro, distantes uns dez metros. Como no beisebol, um jogador arremessa a bola e o da equipe adversária tenta rebater. Se conseguir, o outro membro da dupla que arremessou. Se conseguir, os outros membros que estavam posicionados atrás dos rebatedores saiam correndo atrás da bola, caia ela onde cair. E assim vão se somando os pontos. Naturalmente o taco em questão era um pedaço de pau qualquer que pudesse ser segurado com as mãos sem grandes dificuldades.

Na rua e na escola, além do jogo de taco, brincava-se muito de queimada, brincadeira na qual havia dois grupos separados por uma linha imaginária. Quem estivesse com a bola, ou algo parecido a uma bola, deveria arremessar com toda a força para acertar, ou melhor, queimar um dos oponentes. Nas festas domésticas de aniversários regadas a tubaína, acompanhado sanduíches secos de pão de forma com algum patê, balas de açúcar e um bolo cheio de creme no qual era comum passar o dedo para dar uma lambida, as brincadeiras mais comuns eram o pega-pega, cabra cega e esconde-esconde.

Nossa casa, embora pequena, possuía um quintal com duas áreas bem distintas: uma parte acimentada em frente à porta da casa e uma parte de terra aonde até porco foi criado em uma certa ocasião. Podia-se manter um jardim, o labirinto de ferro da primeira crônica e um espaço para uma trave de futebol propício para o jogo um no gol e quantos estiverem presentes na linha, ou seja, dois times disputam a bola, mas só um goleiro participa da brincadeira defendendo os chutes de ambos os adversários. Outro jogo típico era o bobinho, modalidade em que se faz uma roda ao redor de um jogador que tenta tomar a bola dos que estão ao redor trocando passes entre si. Conseguindo, ele vai para a roda e quem perdeu vai para o centro bancar o “bobinho”. Neste quintal, além da bola, brincávamos de carrinho fazendo estrada, túneis e pontes escavadas na terra. Os personagens imaginários que dirigiam e participavam das brincadeiras eram retirados das séries que mais gostávamos, principalmente as japonesas Ultra Man e Ultra Seven. Em época que não havia carrinhos de brinquedo, fazíamos nós mesmos os carrinhos, tratores e caminhões com lata, pregos, barbantes e pedaços de pau.

Embora pudesse ter visto a copa de 1974 aos seis anos, não me recordo nada dela. Até 1978 não havia tv a cores em casa. A copa de 1978 foi a primeira a ser transmitida a cores. A embalagem do são em pó OMO trazia a reprodução das camisas das seleções e eu tentava comparar com as cores da televisão. Toda copa do mundo tem um atrativo enorme aos garotos. Esta não foi diferente. Aumentamos o interesse pelo futebol como era de se esperar. O maior desejo da garotada mais humilde era ganhar um tênis Kichute, que era a chuteira mais acessível do mercado, embora não fosse exatamente uma chuteira de futebol, mas tinha os cravos e era feita de borracha com tecido e bico reforçado.

Em certa ocasião, economizamos um pouco de dinheiro vendendo ferro velho para comprar uma bola de capotão, bola de couro do tipo oficial com gomos pentagonais. Era o supro sumo. Durou pouco pois foi picotada pelo vizinho da igreja quando jogávamos na quadra e a bola caiu no seu quintal. A tradição era passar sebo de vaca na bola para amaciar o couro. O sebo a gente pegava no açougue. Depois de alguns dias fazendo isto, ela estava pronta.

O amor ao futebol, nesta época, também criou a ilusão de que nós, meu irmão e eu, poderíamos ser jogadores de futebol. Joguei nos times da escola o futebol de salão. Como era e sou baixinho, na hora de escolher os times, eu sempre me juntava aos menos dotados da aula de educação física. Joguei no gol em um campeonato da escola e, embora tenhamos perdido todos os jogos, eu era vazado no máximo duas vezes a cada partida. Em uma ocasião nosso pai quis levar na peneira do São Paulo, lá no Morumbi. Estava me achando. Fazia caras e caretas na escola. No final, fomos até lá e a peneira não aconteceu. Não houve uma segunda chance.

Algum tempo antes, entre 1974 e 1975, nosso pai comprou dois jogos de futebol de botão, o que viria a ser uma febre entre nós e os garotos vizinhos. Um dos jogos, o do Corinthians, ficou para mim e o outro, do São Paulo, foi para o meu irmão. Para estes times torcemos desde então, eu corintiano e meu irmão são paulino. Até hoje não entendo por que meu pai, sendo santista nos deu estes times. Imagino por ser porque ele não era muito ligado no futebol. Com estes botões jogamos muito. Como não tínhamos o campo de madeira, conhecido como estrelão, eu riscava a giz o campo no piso de casa usando as medidas proporcionais dos campos de futebol oficial. Segundo o manual do Zé Carioca, que fazia parte de nossa coleção, o campo oficial teria as medidas mínimas de 45 X 70 metros e máxima de 90 x 120 metros. Sendo assim eu usava a proporção de 1/100, ou seja, meu campo tinha 1,20 metros por 90 centímetros.

Jogámos botão também usando tampinhas de garrafa. No final dos anos 1970 e até o começo dos 1980, a Coca-Cola lançou, em seus refrigerantes, a estampa dos personagens da Disney na parte interna das tampinhas. Viramos colecionadores destas tampinhas e fazíamos times de futebol de botão com elas: Fanta laranja, Fanta uva, Fanta limão, Coca-Cola. Como éramos apaixonados pelos personagens da Disney, estas tampinhas eram perseguidas nas ruas, na hora de ir à padaria ou bares, em qualquer lugar. Quando podíamos tomar o refrigerante, a garrafa era aberta com o máximo de cuidado para não amassar a tampa e assim preservar a figura intacta.

Da coleção literária, além dos gibis da Disney, tínhamos também os manuais do Zé Carioca, como mencionado acima, com tudo sobre futebol, o do Peninha que abarcava o mundo da imprensa, o do Tio Patinhas que tratava do mundo do dinheiro, do professor Pardal que versava sobre invenções, da Maga e Mim que tratava das feitiçarias e o Manual do Escoteiro Mirim.  Havia outros manuais que nós não tínhamos. Estes manuais podem ser comprados ainda, mas não sei se atualizados ou não.

 

Voltando às brincadeiras na rua, nosso pai não permitia que ali ficássemos sob hipótese alguma, apesar da tranquilidade do local e da facilidade de se vigiar, a partir do muro de casa, o que estaríamos aprontando. Fossemos pegos na rua, a conversa seria com a chinela ou a cinta na mão. Porém, entre 1978 e 1979, durante uma crise no casamento, ele ficara fora de casa por um período, o que representou uma época de festa para meu irmão e eu. Começamos a frequentar a praça para jogar bola com a molecada, principalmente ao final do dia e à noite durante o verão. Acendíamos as luzes das casas ao redor da pequena praça e nos divertíamos. A bola era algo sempre capenga, sempre ruins. Quase qualquer coisa poderia ser uma bola. A que eu mais lembro era uma branca de plástico grosso, pesada, murcha, mas com uma certa consistência. Curioso como não me esqueço desta bola. Tenho a sua imagem nítida na memória.

Nesta pequena turma que brincava mais junto havia o Marquinhos, morador da mesma época que nós e o Vitor com seus irmãos Paulo e Bitré ou Biré, que eram recém-chegados. Segundo o Vítor e o Paulo, o apelido Bitré teria origem na mania do irmão mais novo de comer as cacas do próprio nariz que, na terra deles, lá para as bandas das Minas Gerais, tinha este nome popular que dera apelido a ele. Seu nome de verdade eu nunca soube. A turma era pequena pois havia poucas crianças de idade próxima ao redor e as turmas das outras ruas não se misturavam muito. A gente ouvia falar da turma da outra rua como se formássemos guetos que se protegessem em momentos de desentendimento, mas nunca houve nenhuma ocorrência neste sentido.

Esta turma rendeu muita alegria e muita briga. Brigas mais entre os irmãos e discussões acaloradas a respeito das rivalidades futebolísticas, afinal o Marquinhos era palmeirense e o Corinthians estava num momento de baixa.

Em meados dos anos 1980, nosso pai decidiu que, para retomar os laços conjugais e familiares, o melhor seria mudarmos de lá para não sermos o foco da “maledicência” dos vizinhos. Juntamos o Vitor, o Paulo e o Bitré para contar a novidade e prometemos que voltaríamos com uma certa frequência para visitá-los e manter acesa a chama da amizade. Balela das maiores. A mudança planejada pelo nosso pai nos levou ao distante bairro de Parelheiros, extremo sul da Capital, praticamente nos isolando por lá, o que provavelmente combinaria perfeitamente com a vontade do velho em manter suas atividades paralelas longe dos olhos familiares.

Esta época foi marcada por estes momentos felizes em meio aos momentos de tristeza pois o velho era muito rígido com meu irmão e eu, disciplina quase militar. Tirando, porém, o que está ruim, tudo fica bom. Não é? Tenho saudades destes momentos, mas gostaria de revê-los em um filme na minha tela mental com maior nitidez, sem desejar necessariamente voltar o tempo.

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